Com frequência tenho sido questionado acerca da cremação, dado este pelo aumento de crematórios no Brasil, bem como outras motivações pessoais, como modismo, ou ainda o conhecimento histórico onde esta escolha, no passado, foi rechaçada pela Igreja Católica por estar relacionada a crença de que com a morte tudo termina no nada, ou para burlar ao costume cristão da sepultura. Mas hoje os tempos são outros, como também a mentalidade. Certamente, esta ou outras tantas perguntas reside no desejo de acertar.
E quanto a pergunta acima que não quer calar, pode ou não pode? O que a Igreja ensina?
É sabido que a maneira de velar, sepultar, de tratar o corpo falecido tem muito haver com questões culturais. Neste sentido, nós cristãos, seguindo os passos da Tradição Judaica, nos afeiçoamos mais à prática do sepultamento. O que não significa a proibição da cremação. E para um melhor esclarecimento do que nos orienta a Igreja encontramos algumas luzes no próprio Catecismo da Igreja Católica e no Código de Direito Canônico: “A Igreja permite a cremação, se esta não manifestar uma posição contrária à fé na ressurreição dos corpos” (n. 2301). “A Igreja recomenda insistentemente que se conserve o costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido escolhida por motivos contrários à doutrina cristã” (1176). O próprio novo Ritual das Exéquias possibilita a realização das cerimônias de cremação no próprio crematório, dando sentido ao novo costume: “O fogo ao qual entregamos este corpo não é símbolo de destruição, mas sinal do amor de Deus que quer purificar e transformar nosso irmão para que possa alegrar-se na presença de Deus”.
Um outra orientação que a Mãe Igreja nos oferece, que vai além de um desejo subjetivo, diz respeito ao destino das cinzas. “Nós católicos”, diz o Vaticano, “não devemos pulverizar as cinzas de um defunto logo depois de ser cremado, já que essa prática, que está na moda atualmente, é contrária à fé cristã […] a cremação se considera concluída quando se deposita a urna no cemitério […] O respeito pelo corpo humano inclusive quando já não tem vida”.
“A sepultura do corpo dos defuntos é a forma mais adequada para expressar a fé na ressurreição da carne, assim como para favorecer a lembrança e a oração de sufrágio por parte de familiares e amigos” (Dom Angelo Lameri). E ainda, “testemunha a forte exigência de cultivar a memória, de ter um lugar certo no qual depor o cadáver ou as cinzas, na certeza profunda de que isto é autêntica fé e é autêntico humanismo” (Dom Alceste Catella).
A pouco celebramos Os fiéis defuntos, e, quem pôde fazer a visita ao cemitério, pôde testemunhar a importância que damos a este dia. O túmulo do ente querido acaba sendo lugar de memória (da sua história, das suas lembranças, enfim, de tantas recordações), mas também lugar de encontro (dos filhos, netos, amigos, etc), e, por isto mesmo, lugar de reconciliação (com o outro, mas acima de tudo, consigo mesmo). Sem contar que, sepultar é vencer aquela tentação de, mesmo “mortos”, sermos egoístas, isto é, pensarmos só em nós e nos nossos desejos. Para alguns, queridos leitores, a sepultura é o que “restou” do outro, que já não mais está aqui. Algumas escolhas, infelizmente, são apenas resultados de escolhas feitas em vida: viveu egoisticamente, sozinho, sem amigos, longe de famílias, etc., e por isto também, no fundo pode bater um medo de não ser visitado no cemitério, medo de não ser mais lembrado. É certo que nunca podemos generalizar. Cada um, é cada um, e cada escolha fala da sua vida.
Mas, somando a tudo isto, e com uma luz mais intensa, podemos dizer que a sepultura exerce um caráter mistagógico. Quando nos deparamos diante de um túmulo, junto as lembranças, somos chamados a aquecer o coração saudoso com a luz da esperança cristã. Aquela esperança que não decepciona jamais (Rm 5,5). Cultivamos ali, no silêncio ou na prece, uma reflexão sobre a vida, sobre a nossa vida, e sobre a vida em plenitude (Jo 10,10) que é promessa Deus. Lugar de fazer crescer em nós aquela esperança certa de que “eles estão em paz” (Sb 3). Portanto, a sepultura tem esta força de fazer crescer em nós o desejo pelo céu.
Este breve comentário é apenas uma provocação para aprofundarmos o tema. Abaixo temos uma reflexão do Pe. Inácio José Shuster, que nos ajudará a alargar nosso conhecimento e fundamentar nossas escolhas. Boa leitura.
Pe. Reginaldo Teruel Anselmo é pároco da paróquia Santa Maria Goretti em Maringá-PR; mestre em Teologia Dogmática
Os motivos da saúde pública
A Igreja reconhece que a cremação hoje “é com frequência pedida, não por ódio contra a Igreja ou contra os costumes cristãos, senão somente por razões higiênicas, econômicas ou de outro gênero, de ordem pública ou privada” (Instrução da Congregação do Santo Ofício, 1963). Em outras palavras, se legitima a cremação porque contribui à higiene ou a saúde pública, e porque já resolve as crescentes necessidades de espaço nos cemitérios da cidade. Em tais situações, além de respeitar a opção pessoal, se pode considerar o pedido de cremação.
A cremação, mais além de algumas particulares motivações ideológicas, se pode conciliar perfeitamente com a fé cristã e com a piedade para com o corpo do defunto. “De fato a cremação do cadáver, como não toca a alma não impede a onipotência divina reconstruir o corpo; assim não contém, em si e por si, a objetiva negação destes dogmas”, da ressurreição dos mortos e da imortalidade da alma.
O sentido pascal (morte e ressurreição) da cremação é o mesmo daquele da sepultura: aquilo que volta a ser pó ou cinza está destinado à ressurreição. Por outro lado, ninguém pense que na ressurreição se retome a mesma matéria, o mesmo sistema ósseo que temos agora. Sabemos que nesta vida a matéria muda, mais ou menos, cada 7 anos. Em resumo, na ressurreição, não se tratará de um novo início da velha existência, senão de uma nova realidade de vida.
Espera da ressurreição
Igreja não proíbe a cremação, mas recomenda continuar com “o piedoso costume de sepultar o cadáver dos defuntos”, porque tem um significado que, pelo contrário, não tem a cremação. Isto significa que, confiar o cadáver a terra é recordar a morte como um sono à espera do despertar na ressurreição.
Por isso o nome cristão de “cemitério” (que significa dormitório). Além do mais, na linguagem bíblica, a sepultura é também um sinal do limite humano: “Até que voltes a terra, pois dela foste tirado. Porque é pó e ao pó voltarás” (Gn 3, 19). Também: “Um penoso jugo foi imposto a todos os homens, uma pesada carga incomoda aos filhos de Adão, desde o dia em que saem do seio materno até aquele em que voltem a mãe terra” (Si 40, 1). Resumindo, sem recorrer a interpretações literais dos textos sagrados, as palavras bíblicas se ajeitam melhor a sepultura que a cremação.
A sensibilidade dos crentes
Mas nos perguntamos: Por que esperar a decomposição do cadáver quando se pode fazê-lo imediatamente com a cremação? A sepultura não deve ser considerada talvez como o resíduo de uma mentalidade atrasada e supersticiosa? Pensar as coisas dessa maneira significa dar a cremação um significado ideológico, seguramente diverso daquele anticristianismo e antirreligioso do passado, mas de todas as maneiras desaprováveis. A sepultura expressa uma opção pelo desenvolvimento natural da decomposição, mas não é justo qualificá-la como naturalística ou irracional. Trata-se, pelo contrário, de uma sensibilidade que tem seu próprio significado e, para o crente, de um costume que se relaciona com uma longa tradição que também hoje encontra sentido.
As resistências psicológicas das pessoas a cremação – é escolhida por uma minoria – não se podem considerar como retardos culturais sobre a modernidade.
Deve-se, portanto, respeitar a quem pede a cremação, mas se deve dar uma informação adequada ao respeito ou responder a pressões que estejam nessa direção. Cálculos de mercado e de ganhos podem estar por debaixo das cerimônias de sepultura dos defuntos, mas isto pode suceder também para a cremação, e é necessário denunciar a ambos.
A piedade cristã exige que tanto na cremação como na sepultura sejam respeitadas as almas dos defuntos e os ritos sejam abertos a esperança (certeza) da ressurreição.
Pe. Inácio José Shuster
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